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sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O Brasil visto “de fora”.


O Brasil visto “de fora”.

Flávio Carvalho. Sociólogo. Barcelona, Outono de 2007.

Um dos livros mais recomendados nos estudos de Ciências Políticas no Brasil foi escrito por um norte-americano, Thomas Skidmore. Uma referência do fenômeno do brasilianismo, ou seja, estudos dedicados a compreender o Brasil, um país mais fácil de gostar do que de explicar . Assim se constituem a categorização dos brasilianistas: estudiosos que, não necessariamente sendo brasileiros, se interessam pelas complexidades do Brasil.
Skidmore conseguiu escrever uma grande obra, devido a um rigor metodológico que se entende como objetividade e distanciamento por não fazer parte do tema em análise (a política brasileira). Ou seja, estando “fora” do contexto de politização da sociedade brasileira no período da ditadura militar, Skidmore pôde exercitar uma visão privilegiada sobre o país. Alguma coisa como entender, por exemplo, a beleza da cidade do Rio de Janeiro do alto do Cristo Redentor (um monumento nacional). Dali se percebe muito melhor a grandeza dessa beleza. Beleza esta, que muitos cidadãos do Rio de Janeiro nunca tiveram, nem nunca terão acesso, porque não puderam, por diversos motivos, chegar lá no alto. Nem pagando o preço turístico do bondinho, e muito menos viajando de avião, coisa que muitos não poderão fazer jamais em toda a sua vida.
Também nos Estados Unidos está a sede da Brazilian Studies Association (Brasa), o maior centro de estudos brasilianistas do mundo, com centenas de pesquisadores sobre o Brasil. Pois foi justamente depois de morar nos Estados Unidos que Gilberto Freyre, o sociólogo brasileiro que tem a obra mais reconhecida em nível internacional (Casa Grande & Senzala, o livro mais prestigiado) afirmou que teria podido escrever com um olhar “privilegiado”, sobretudo depois de poder comparar de perto a presença e influência da população afro descendente (seu principal “objeto de estudo”), no Brasil e nos Estados Unidos.
Roberto da Mata, antropólogo brasileiro, autor do livro “O que faz o Brasil, Brasil?”, é professor da Universidade de Notre Damme, nos Estados Unidos e eventualmente destaca a possibilidade de um outro olhar “de fora”, sobre o Brasil. “O que lhe dá um ponto de vista privilegiado para uma análise comparativa das duas culturas”, segundo o livro “Quatro autores em busca do Brasil” .
Certamente são poucos os brasileiros que tiveram a oportunidade de entender a famosa expressão “Brasil, país do futuro”, que uma importante banda musical de rock dos anos 80 insistia em repetir em uma de suas músicas mais conhecidas . Um futuro que, dependendo da perspectiva de onde se canta, parece que insiste em não chegar. A pessoa que conseguiu projetar mundialmente essa expressão, o austríaco Stephen Zweig, autor do livro de mesmo nome, é muito mais reconhecido na Europa – do que no Brasil - por suas novelas, críticas literárias e sua descrição da Europa entre guerras (“O mundo de ontem”, sua obra-prima). No prefácio do seu livro, escrito logo após da deflagração da segunda guerra mundial, o crítico literário Antonio Candido insinua que o livro teria sido “negociado” com o governo Vargas para facilitar o asilo político de Zweig, em fuga do nazismo. Um privilégio que deu a Zweig a possibilidade de deixar-nos uma visão apaixonada e apaixonante sobre o Brasil (um país que encontrou a arte de dissolver as tensões, sem anular as contradições, segundo o autor), antes de suicidar-se em pleno carnaval do Rio de Janeiro. Zweig foi, assim, um dos precursores do brasilianismo. Talvez um dos mais importantes, embora não seja popularmente reconhecido como tal no Brasil e muito menos no exterior.
Sua obra, desprovida de rigor sociológico, contribuiu significativamente para estabelecer as bases teóricas do que seria o fenômeno cultural da cordialidade brasileira, que só foram melhor esclarecidas (desmistificadas) no livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (um sociólogo “de verdade”, além de ser muito mais do que o pai do cantor, compositor e escritor Chico Buarque de Holanda). Naquele livro (e mais detalhadamente em um outro livro preferido pelo próprio Sérgio, Visões do Paraíso), Buarque conseguiu estabelecer um novo marco sociológico no estudo das relações socioculturais brasileiras, depois de Gilberto Freyre : o Brasil não era um país em branco e preto, ou uma nação adepta da relação maniqueísta do “isso versus aquilo” . Morando na Alemanha e conhecendo profundamente a obra do sociólogo alemão Max Weber, Sérgio Buarque de Holanda analisou a dualidade (não necessariamente contraditória) entre a formação do Brasil rural e urbano, português e espanhol, dentre outras dicotomias. Melhor dizendo, o que explicaria a construção histórica da sociedade brasileira não era a contradição entre a cordialidade de uns e a agressividade de outros, senão que se havia construído uma nova relação em meio destes dois aspectos; uma nova relação tipicamente brasileira, que nenhuma outra nação estaria experimentando naquele momento.
A peculiaridade de toda essa história é que esses autores anteriormente citados tiveram a possibilidade de ampliar seus conhecimentos sobre a realidade brasileira não apenas lendo livros em outras línguas, mas aproveitando o fato migratório de estarem vivendo em outros países, enquanto trabalhavam e maduravam suas reflexões sobre o Brasil.
Ao falar do brasilianismo, queremos dizer que estão presentes dois grandes desafios nos interesses sobre esse país diverso.
O primeiro, faz referência ao interesse norte-americano e o dilema de tentar interpretar as diferenças significativas no processo de formação dos dois países. O que teria dado certo ou errado entre um e outro, além da singular diferença entre a maior nação católica do mundo e a colonização protestante dos Estados Unidos anglo-saxão? Algo além do que a relação entre “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, que já havia analisado Weber em relação à Europa? Porque um país havia “dado certo” e o outro não? Um episódio simbólico que demonstra o quanto é complexa essa equação foi a resposta dada por Tom Jobim, quando convidado por Frank Sinatra a viver nos Estados Unidos. Disse o cantor e compositor Jobim:
- “Viver nos Estados Unidos é bom, mas é uma merda; viver no Brasil é uma merda, mas é bom”!
Jobim, com uma breve resposta, nos convida a pensar muito mais do que simplesmente significa para uma ou outra pessoa viver aqui ou ali. O que é bom? O que é uma merda? A ordem dos fatores altera o produto? Melhor que resposta, o poeta simplesmente nos provoca a uma boa reflexão sobre gostos e desgostos...
Mas o Brasil é imensamente maior do que um país condenado a se relacionar com os Estados Unidos e muito menos a se comportar como o seu quintal (enquanto, de fato, não deixa de dar às costas e se relaciona com seus hermanos de Latinoamérica).
Quantas vezes não se escutou dizer que o Brasil vive à beira do Atlântico, mirando para Europa, de costas para a própria América Latina? Pois agora é como se somente nesse novo milênio a Europa estivesse despertando sua “curiosidade estereotipada” (desconhecimento mútuo, na verdade: touros pra lá, sambas pra cá), dando lugar a uma análise brasilianista de qualidade, em tempos de intensificação dos processos de globalização – intermediada pelos interesses dos grandes veículos de comunicação.
E depois dos vínculos estreitos entre Brasil e Portugal (sempre complexos na inesquecível relação entre colonizador e colonizado, por mais quinhentos anos que passem), uma boa resposta tem surgido também da Península Ibérica. A Espanha, que disputa com o Brasil o posto de oitava economia mundial, é o segundo maior país com interesses (privados) no Brasil, depois dos Estados Unidos . Interesses privados, que intentam associar uma relação mais próxima em âmbito público. A recente visita do Presidente Lula ao Presidente Zapatero teve o destaque de regularizar a situação do Centro de Estudos Brasileiros naquele país, além de potencializar a presença dos Institutos Cervantes no Brasil e a realização das semanas culturais entre os dois países. O melhor exemplo desse novo momento nas relações bilaterais entre os dois países é a realização do Encontro de Brasilianistas pela Fundação Cultural Brasil Espanha, em Madrid. E, por parte da crescente comunidade brasileira naquele país (setecentos por cento de aumento proporcional de brasileiros na Espanha, desde o início do novo milênio), ao mesmo tempo em que indubitavelmente os olhos do mundo se voltam cada vez mais para “o país do futuro”, surgem diversas iniciativas de aproximação intercultural, como o recém criado Coletivo Brasil Catalunya, em Barcelona (e sua tentativa de estabelecer uma cumplicidade com os catalães no Brasil ou na Catalunha, como faz a organização Catalonia, dos catalães imigrados a São Paulo).
Surge um interesse que transcende aspectos estereotipados como a música, o futebol e as mulatas (mesmo considerando a importância dos ritmos brasileiros, dos melhores futebolistas do mundo, e das melhores top models). No livro “Um novo mundo feliz”, o sociólogo Urich Beck, bastante conhecido nos meios acadêmicos publica já na contracapa: o futuro da Europa é a brasilianização das relações de trabalho. Slavoj Zizeck, destacado filósofo esloveno, vai pelo mesmo caminho. Toni Negri, outro importante sociólogo best-seller, resolveu passar uns anos no Brasil, para tentar entender melhor o mundo. E daí por diante.
Os vínculos do Brasil com a Europa são ainda muito mais evidentes do que a constatação de que nenhum outro país no mundo recebeu tantos europeus imigrantes como o Brasil. Documentados ou não, parece não ser a grande preocupação. Mas geralmente bem recebidos, isso sim. E não estamos falando dos primeiros colonizadores, de quinhentos anos atrás. Basta analisar os sobrenomes de importantes expoentes na sociedade brasileira como Niemeyer, Lispector, Odebrecht, Bündchen, Scolari, Schmidt, Stédile, Suplicy, Dumont, Abravanel, Maluf, Grzbowski, Whitaker, Fiori (e muitos outros), para perceber o quanto há de “integração” na imigração brasileira. No Brasil ninguém se preocupa em pensar se estamos falando de imigrantes de segunda ou terceira geração. Não é necessário falar perfeitamente o “espanhol” ou o “português”, pois já está disseminado o “portunhol”. Não há terrorismo além da violência quotidiana. Não se exige provas de DNA aos imigrantes, até mesmo porque os recentes testes de DNA realizados em um sambista famoso que se chama “Neguinho da Beija-flor” ou com o futebolista Ronaldo os caracterizaram como seres humanos de genética predominantemente européia. Sem criar grandes complicações maiores do que já existem, sem pensar duas vezes e sem olhar pra trás, o Brasil simplesmente incorpora a diversidade cultural no seu tumultuado processo de desenvolvimento. E ultimamente resolveu projetar-se internacionalmente justamente como uma alternativa de desenvolvimento sustentável baseado em um novo modelo de respeito à diversidade cultural. Não é a toa que o Ministro da Cultura do Brasil, Gilberto Gil foi um dos principais articuladores e responsáveis pela aprovação de uma Convenção Mundial que estabelece um marco político e jurídico em defesa da Diversidade Cultural: a “Convenção da UNESCO”,
E aqui surge o segundo desafio: como aproveitar o potencial diversificado da migração estrangeira no Brasil e brasileira no exterior, nesse novo cenário de diálogo intercultural em nível mundial? Como possibilitar a construção de uma nova visão sobre o país que se renova e que se propõe a contribuir para a “reinvenção do mundo”?
Segundo João Gabriel de Lima (Revista Veja), a nova geração de brasilianistas deixa a história de lado e se debruça sobre a atualidade nacional: “os brasilianistas dos anos 70 eram principalmente historiadores. A nova geração se notabiliza pelos ‘explicadores’ – é crescente o número de cientistas políticos, sociólogos e antropólogos. Em vez de pesquisar o passado, eles se debruçam sobre a atualidade brasileira. Além de atuarem nas universidades, dão palestras para empresários e investidores. Os cientistas políticos, grandes estrelas da turma, freqüentemente são chamados para exposições no Departamento de Estado americano. Com isso, realmente contribuem para a formação da imagem do Brasil lá fora. Talvez até mais do que seus antecessores nos anos 70, cujas obras raramente saíam do âmbito universitário”.
Com essa afirmação, afinal nos fica um sinal de alerta.
É possível construir uma nova forma de pensar o Brasil, deixando a história de lado?
A amnésia coletiva já não fez suficiente mal ao Brasil, um país que vive em busca do equilíbrio entre o passado e o futuro? Esse equilíbrio já existe: o presente!
Por isso, o país do futuro é construído no cotidiano dos brasileiros. Os brasilianistas serão sempre bem-vindos, se não esquecem dessa história. E se quiserem morar, voltar ou passar um tempo no Brasil, também.

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