Diplomacia e Cidadania.
Flávio Carvalho.
Avaliação de uma experiência pessoal de participação na 1ª Conferência "Brasileiros no Mundo", promovida em julho, no Rio de Janeiro, pelo Ministério das Relações Exteriores do Governo do Brasil.
Em maio deste ano, em Brasília, graças ao Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios, pouco depois de participar de uma interlocução com a Presidência da República como representante da Rede de Brasileiras e Brasileiros no Exterior, o Ministro Gradilone, responsável pelo tratamento dedicado às comunidades brasileiras no exterior, do Ministério das Relações Exteriores, me comunicou pessoalmente a realização de uma grande atividade dedicada ao tema da Emigração Brasileira, previsto para o mês de julho. Dias depois, um dos seus assessores, Sr. Aloysio, também do MRE, iniciou comigo uma série de troca de mensagens eletrônicas estabelecendo o que seria uma frutífera proposta de parceria entre a diplomacia brasileira e a cidadania brasileira no exterior. Ainda hoje não pude agradecer pessoalmente a gentileza deste servidor público (dentre tantos outros da FUNAG e do MRE), que se comunicava comigo quando a noite já se fazia tarde, para informar que novas pessoas haviam feito a sua auto-inscrição, de última hora, e perguntando se ainda havia tempo e interesse (confirmado e correspondido) de comunicar-se com estes.
Até mesmo o nome da atividade, começava a mudar de forma muito significativa, tanto que talvez não tenha sido percebida por muitos. O Seminário para as comunidades brasileiras no exterior passava a se denominar Conferência Brasileiros no Mundo, embora em alguns documentos mantivesse a idéia inicial de Seminário. O que há de significativo nisto?
Em primeiro lugar, sabia-se de interesse público a proposta de conteúdo do Seminário e a informação com a programação foi dialogada e exposta para toda a sociedade. Estava publicada em página na Internet aberta à sociedade e, a partir daqui, o único questionamento que cabe pode ser direcionado a um ou outro consulado que não tenha se esforçado em divulgá-la amplamente.
A participação dos principais protagonistas, os emigrantes, em todo o processo de discussão e de decisão, assegurando uma metodologia coerente com a proposta (dentre pesquisadores, especialistas e autoridades), estava garantida. Em segundo lugar, o MRE disponibilizava apoio de infra-estrutura e comunicação para que as comunidades pudessem se reunir, paralelamente à programação oficial. De posse dos contatos de todos os participantes, convidados ou auto-inscritos, começou um trabalho minucioso de, nas vésperas do Seminário, organizar a reunião da nossa proposta de Rede, no Rio de Janeiro. Reservar sala no mesmo hotel onde estaríamos hospedados, enviar email para todos os participantes que estavam inscritos (todos! Conforme lista de emails enviados, que guardo com carinho) informando da reunião, articular com o apoio da assessoria de imprensa do MRE a divulgação dos nossos documentos, dentre outras tarefas voluntárias que estamos desenvolvendo desde o Encontro de Bruxelas, em novembro passado.
Mas como a semântica também diz muito, em uma das 22 propostas enviadas da Espanha (após um processo de consulta como pode ser feito, via internet – por não dispor de recursos para realizar ligações telefônicas de longo alcance – consulta essa que também guardo com carinho, com muitos retornos e muitos não retornos), havia uma proposta, dentre outras, que ganhava relevância mesmo fora da Espanha. Uma proposta que também havia sido aprovada recentemente na Secretaria de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores e encaminhada à Conferência (e que não por mero acaso é o Partido que elegeu o atual Presidente da República). O Governo do Brasil possui uma larga experiência de Conferências para a elaboração de políticas públicas que não poderia ser desprezada. Nós tentávamos emendar: conferências nacionais ou internacionais, para que promovam efetivamente a participação das cidadãs e cidadãos tem que estar embasadas em discussões prévias realizadas com as bases, localmente, ou seja, em cada país. E com poder de decisão para influenciar a elaboração de políticas públicas.
Coincidentemente, ou não, um amigo daqui de Barcelona me perguntava: participarás do Seminário ou da Conferência? Para mim, estava claro, tal como exposto em informação oficial da atividade divulgada na Internet para quem quisesse consultar: o Ministério das Relações Exteriores convocava a 1ª Conferência Brasileiros no Mundo, com o primeiro dia dedicado à conceitualização do fenômeno, por parte de acadêmicos e organizações com larga experiência sobre o tema, e o segundo dia seria dedicado ao debate entre as comunidades e Governo, sobre propostas de atuação sobre o fenômeno.
Além disso, creio pessoalmente (como todas as expressões pessoais contidas nesse texto), que a expressão "brasileiros no mundo" corresponde mais à totalidade e relevância do fato: o Brasil parece ainda não saber ou resiste em perceber que há muitos brasileiros "espalhados" em "todo o mundo". Por outro lado, a terminologia "No Exterior", soa como brasileiros que "saíram", passaram para o "lado de fora". Mas onde é esse "lado de fora", o que significa esse "exterior" do Brasil? Destes, quem retorna ao Brasil? Existe um motivo ou um conjunto de explicações para os brasileiros que querem emigrar? Quantos e quem são essas pessoas, porque, como, com quem, quando e para onde emigraram? E as brasileiras emigrantes? Ou talvez seja ainda mais interessante perguntar como as vidas desses cidadãos e cidadãs se encontram atualmente nos países onde vivem? E, lamentavelmente, cabe ainda perguntar em que condições de sobrevivência se encontram algumas destas pessoas?
Todavia, penso que o principal êxito da Conferência havia sido obtido antes do início da programação oficial. Tão histórico quanto à própria realização da Conferência, era o fato inédito de que representantes de comunidades que englobam números ainda dispersos de milhões e milhões de brasileiros em todo o mundo, pela primeira vez se reconheciam, se identificavam, reconheciam e respeitavam as suas diferenças e projetos comuns. E, a partir daqui, passavam a trocar as suas experiências, compartilhando vivências, expectativas e objetivos estratégicos.
Eu já havia antes desfrutado a possibilidade de conhecer exitosos projetos desenvolvidos por associações de Boston, nos Estados Unidos. Mas confesso estar bastante impressionado com o que passei a conhecer de outras experiências brasileiras naquele país. Posso dizer, por exemplo, da quantidade de jornais e revistas publicados por organizações de brasileiros nos Estados Unidos (além de outros tantos países) que quase me fizeram pagar por excesso de bagagem e impressionaram o oficial de imigração na Espanha. E depois de bastante satisfeito com alguns trabalhos desenvolvidos em Boston, foi a vez de conhecer outras dinâmicas de trabalho, como os 26 carros disponibilizados por uma comunidade evangélica de brasileiros na Flórida. Para quem imagina o que representa naquele país ter ou não ter um carro, não precisa explicar mais nada.
Evidentemente, na Conferência, o fruto não poderia ser maior que o intercâmbio de experiências e o diálogo que se inicia. Além do surgimento de novas alianças e projetos, como me alegro de ver a ida da cineasta brasileira na Bélgica para apresentar o seu filme sobre os imigrantes brasileiros naquele país, a convite de organizações de brasileiros emigrados aos Estados Unidos. Penso que já foi muito ter chegado onde penso que estamos chegando, em reuniões de pouquíssimas horas, com pessoas que ainda estavam chegando de longas e cansativas viagens. E com outras tantas pessoas que não puderam participar porque simplesmente não possuíam recursos financeiros para custear as suas próprias despesas de participação. Tenho a convicção de que milhares dessas pessoas se pudessem, se uniriam a nós. É muito importante não esquecer esses milhares, que poderiam ser milhões. Pessoas de origens sociais e culturais tão diversas quanto o próprio Brasil, com diferentes projetos de vida, e agora ainda assumindo conviver com outras tantas culturas diferentes, de cada parte desse mundo cada vez mais controverso, que cada emigrante já traz um pouco dentro de si. Gerenciar um projeto de convivência em rede é lidar com esse componente enorme de diversidade cultural. Um desafio, no mínimo, interessante.
Pessoas estavam presentes e protestavam por não haver sido informados com antecedência desta reunião. Posso já imaginar o protesto dos que até hoje não tiveram conhecimento dela. Outras pessoas não sabiam que haviam acontecido encontros anteriores. E me fazem lembrar que no próximo encontro haverá pessoas que reclamarão não ter tido o privilégio de haver participado anteriormente. Sempre haverá insatisfação, infelizmente ou felizmente. E, como havia dito anteriormente, se não fosse pela boa comunicação com aquele servidor público, eu teria a minha lista de contatos pessoais guardadas para mim e ele seguiria com a lista de inscritos da Conferência guardada para o Ministério onde trabalha. E muitos dos que lá estavam continuariam protestando pelo acesso à informação.
E os brasileiros que vivem numa cidadezinha da Andaluzia, na Espanha, que não possuem computador, muito menos acesso à internet, e que não podem sair de casa para ir ao "locutório" com medo de ser expulsos do país pela polícia de imigração? E o direito desses terem acesso também à informação que trata dos problemas da vida deles?
Em determinado ponto da reunião, quando outra noite também já se fazia tarde, e não conseguíamos sequer chegar a um consenso sobre o conceito de direitos humanos que deveriam ser defendidos, creio que optamos pela atitude mais coerente. Uma Rede de Brasileiras e Brasileiros no Exterior, deve continuar a orientação de seguir organizando-se desde a base, em cada país de cada continente, com cada emigrante disposto a colaborar e representar o segmento social ou cultural ao qual pertence, formalmente ou informalmente, indivíduo ou coletivo, seja qual for a sua religião, raça, opção política ou opção sexual, para ficar apenas em alguns exemplos. Mas uma coisa ainda pode ser certa: seguiremos tentando nos articular e nos encontrar pessoalmente. Por isso mesmo, assumi o desafio de ajudar a construir um próximo encontro, em Barcelona ou onde quer que seja.
Também em plena consciência dos passos necessários a serem dados na construção desse projeto coletivo: objetivos gerais que reforçam nossos objetivos específicos, de pensar globalmente e agir localmente. Conscientes de estarmos construindo o movimento social mais novo que o Brasil conhece: o da sua emigração.
Mesmo com a expectativa de que sempre haverá pessoas que ainda possam não estar acostumadas com o trabalho coletivo, com as dinâmicas de participação cidadã e até mesmo com os diferentes significados da democracia participativa para qualquer um. Participação para mim, por exemplo, também tem a ver com o poder de autonomia para poder decidir sobre a própria vida. Como me formei também em ciência política, isso para mim tem um nome próprio: "política". Mas como muitas pessoas podem confundir com a outra política, ou com "politicagem", deixo pra lá.
Todavia, até os egos mais exaltados, afinal descobrem o caminho mais fácil para o êxito dos empreendimentos coletivos: a união ainda continua fazendo a nossa força. A união forçada, essa sim, sempre será outro problema.
Sobre a Conferência, há mais a dizer.
Chegando naquele salão deslumbrante do Palácio do Itamaraty, havia uma cadeira e uma placa com um nome reservado para mim. Para aumentar a minha surpresa, outorgando-me o título de Doutor. Abaixo do meu nome, me alegrava mais o fato de que havia um nome ao qual tenho me dedicado ultimamente algumas vezes mais que à minha própria vida, tal como agora faço escrevendo esta longa avaliação, às vésperas de minhas férias, em outra noite que já começa a se fazer muito tarde. O nome da Rede de Brasileiras e Brasileiros no Exterior estava convidando-nos a sentarmo-nos todos, por representação, naquela mesa. Evidentemente por representação, devido ao tamanho da mesa e a quantidade de pessoas que ocupavam aquela sala.
Em princípio hesitei em ocupar uma posição naquela mesa tão importante. Sei dos problemas em ter que assumir algumas decisões importantes, sem condições de poder fazer uma consulta ampla a todas as pessoas que tentamos representar. É o que dizem ser a tal responsabilidade da liderança. E há muitos anos, ainda no movimento estudantil, aprendi a não dedicar ingenuidades em relação a isso. Esse trem quando passa sempre passa mais rápido do que estamos esperando. Em poucos segundos, tentava imaginar o nível daquele privilégio na percepção que despertaria em algumas pessoas que se julgariam mais aptas a estar ali sentadas do que eu (ego, vaidade, ciúme e inveja foram palavras que me vieram à cabeça e logo foram substituídas por orgulho, um sentimento mais coletivo que individual).
Por fim, uma pessoa a quem tenho muito apreço quase me obrigou a sentar, percebendo a minha hesitação e o constrangimento que começava a se estabelecer no salão. Hoje agradeço a ela. E me veio à mente o rosto de muitas pessoas que nos acompanham desde novembro em Bruxelas e que mereciam, mas não podiam estar ali, naquele Palácio.
Dani, minha conterrânea. Desculpe-me. Mas naquele momento me lembrei de ti, aí na Áustria, escrevendo um email de motivação e esperança que eu tinha acabado de ler. Naquela cadeira tão difícil, você jamais imaginaria o quanto me ajudava a sentar. Por isso, sentamos juntos. Muitos.
Para ter uma idéia do que significava aquela representação, naquele momento, havia oito veículos de comunicação na saída, esperando por minhas declarações, em nome da mesma Rede que na quase madrugada passada estávamos reunidos tentando ampliar. Uma das primeiras perguntas que me fizeram foi se eu tinha interesse em ser candidato a deputado representando os emigrados europeus, depois da possibilidade de aprovação do Projeto de Emenda Constitucional (PEC 05/05) que regulariza essa condição no Congresso Nacional. A imprensa nos faz cada pergunta! Entretanto, foi um alívio responder, naquele momento, diante daquelas câmaras, que não tinha esse interesse. E aproveitar para dizer que quando coordenava a formação de um Orçamento Participativo, entendi a compatibilidade entre a democracia representativa (os parlamentos) e a democracia participativa (a cidadania organizada). Mas fazia questão de demonstrar a minha opção estratégica pela segunda, pelo associacionismo cidadão que me conduzia até aqui, inclusive para poder dar essa entrevista.
Há duas fortes propostas de constituição de um Estado Emigrante. Uma que vem da Suíça e outra que foi lançada recentemente em Brasília, através de um livro agradável de ler que eu havia devorado em poucas horas no avião, mas que me deixava com mais dúvidas do que certezas. Em princípio, percebo esse caminho como imprescindível, pela dimensão que ele tem assumido. Por isso tenho pesquisado como esse assunto tem se desenvolvido em outros países como Argentina e Uruguai, dentre outros.
Infelizmente, na proposta aplaudida em Brasília, essa dimensão perpassa muito mais o lado econômico da situação. Pelo pouco conhecimento sobre a proposta da Suíça, que eu mesmo reconheço que deveria dedicar mais tempo (se possuísse) para aprofundar a sua análise, prefiro apoiar a PEC apresentada pelo Senador Cristovam Buarque. Até porque sei que existem outras PECs tramitando (como uma proposta do Senador Marco Maciel, além de outras PECs apresentadas por outros partidos da velha direita brasileira).
Optei por fazer tal como a Conferência caminhou, no sentido de apoiar a PEC 05. E, como não sou defensor do Estado mínimo, creio que o Estado brasileiro deve assumir suas responsabilidades com a cidadania brasileira no exterior. Não concordo com a proposta de que os movimentos sociais ou as ONGs devem assumir o papel do Estado. Interessa-me mais que um Ministério como o MRE utilize toda a sua experiência diplomática para pautar o tema dos direitos humanos quando for tratar de acordos comerciais ou de relações bilaterais ou multilaterais. Não é a toa que a política internacional desse país passou a assumir sua importância no cenário econômico global e tem sido tratada como uma referência em nível mundial. Além disso, não consigo visualizar a emigração brasileira assumindo o papel dos diplomatas nessa questão. Prefiro cobrar para que seja fortalecido o papel da representação diplomática, até mesmo para nos dar o atendimento que merecemos e as negociações dignas com os países onde vivemos. Tanto quanto acredito que estamos preparados para cobrar desses mesmos diplomatas a eficiência nos seus trabalhos, como tem sido feito em diversas circunstâncias. A recente crise dos aeroportos entre a Espanha e o Brasil nos ensinou muito sobre isso. Como sempre temos feito questão de ressaltar nas inúmeras reuniões que tenho participado com o Consulado Geral do Brasil em Barcelona.
Passei algumas horas tardes da noite, lendo todos os documentos mais importantes encaminhados à Conferência. Um deles, que propõe a criação do Estado do Emigrante, afirma textualmente que o primeiro passo é aprovar a PEC 05/05, depois passar a construção desse novo Estado. Foi preciso destacar este ponto, quando o auge da discussão acalorada na Conferência nos forçava a encaminhar uma solução apressada por um abaixo assinado em favor do Estado Emigrante. Antes refletir, até mesmo se for para fortalecer, do que concordar sem conhecer direito. Sem falar na ameaça de que essa proposta possa diminuir todas as outras, pela sua relevância e exuberância.
Também na pressa, quase saíamos da Conferência com a composição de um novo Conselho entre as comunidades e o MRE, que poderia no calor da discussão, sobrepor ou chocar-se com atribuições de um Conselho que já existe e que está em pleno processo de aperfeiçoamento. Um Conselho com experiência acumulada e que tem que ser fortalecido, para nosso interesse imediato: o Conselho Nacional das Migrações. Um Conselho de discussão e elaboração de políticas públicas para a emigração e imigração (juntos, numa perspectiva bidirecional), onde acabamos de pleitear assento e que tem acompanhado todas as nossas discussões, desde a sua participação efetiva no Encontro de Bruxelas.
Trabalhando num Ministério do Governo Lula, aprendi que, no Brasil, quando se diz que as coisas não podem ser feitas da noite ao dia, devemos dar muita importância ao que isso significa. Às vezes, um passo muito necessário para tantas demandas reprimidas em séculos de opressão do povo brasileiro pode significar um retrocesso histórico. E a confiança que eu mesmo depositei nessa nova possibilidade de governo passa pelo reconhecimento de que em quatro ou oito anos, não se pode criar a expectativa de reverter quinhentos anos de dominação do poder econômico oprimindo os canais democráticos de participação popular. Muito menos para reverter duas décadas de emigração em que pouco foi feito efetivamente. Essa Conferência foi, sem dúvida, uma demonstração de vontade política. De querer fazer, o que não é tudo e pode até não ser suficiente. Mas que, na atual circunstância só resta acreditar que o que tem que ser feito, pode ser feito, senão não teria aceitado sequer o convite de vir ao Rio. Nem que fosse pelo mergulho na Praia de Ipanema.
Por isso, as minhas duas primeiras falas na mesa inaugural, perante todos, foram apenas repetições do que eu já havia dito em Bruxelas. Quero ser reconhecido pelo Governo Brasileiro como cidadão, mesmo estando "no exterior", e não como um mero emissor de remessas (até mesmo se eu não envio ou deixo de enviar alguma remessa, essa não é a questão principal). E meia-cidadania não me serve. Só serve se for exercício pleno de cidadania, em condições de votar e ser votado, no Brasil e na Espanha, tal como defendo para qualquer migrante espanhol, por exemplo, que venha morar no Brasil. E assim nos identificamos no conceito que defendo de cidadania universal.
Felizmente, a habilidade impressionante dos condutores da Conferência serviu para fazer com que esta avaliação seja bastante realista. Com o senso crítico em estado de alerta permanente pela oportunidade de estarmos ali reunidos, para mim, assisti a uma aula sobre a arte da diplomacia e saí bastante satisfeito da nossa própria capacidade de sermos protagonistas. Embora deva ressaltar que incredulidade e pessimismo nunca foi o meu ponto forte.
Tanto medo eu tinha que fosse mais teorização acadêmica do que debate de propostas. E terminei saindo de lá com a sensação que queria ter escutado mais dos especialistas, pesquisadores e acadêmicos do que, de fato, não escutei, mas que afinal queria muito ter escutado. Creio que suas exposições foram lamentavelmente prejudicadas pelas "demandas reprimidas" ou pelo imenso "muro das lamentações" de todo aquele grande universo de pessoas presentes. Eu seria capaz de dedicar o meu tempo de discurso para escutar algumas daquelas importantes pessoas que estavam presentes e que não puderam dispor de tempo suficiente para expressar seus anos de dedicação ao tema (muito mais que os meus quatro anos de emigrante, diga-se de passagem).
Por sorte, o meu exercício de dominar as minhas próprias expectativas já me havia alertado de que o tempo deveria ser mais um aliado do que um inimigo. Como havia conversado dias anteriores com o Embaixador que nos representa em Barcelona, e com um companheiro de Milão, o importante seria "centrar fogo" e não sair atirando para qualquer lado ou para todos os lados ao mesmo tempo.
Infelizmente algumas pessoas não perceberam essa mesma estratégia e fizeram questão de aproveitar aqueles quinze minutos de fama para falar do seu próprio umbigo. Em todos esses aprendizados, também acho normal que isso aconteça. E ainda estou aprendendo a respeitar a diversidade de dinâmicas de compreensão sobre a novidade desses assuntos de migração, do qual nunca quis ser especialista, mais do que sou apenas um emigrante.
Escutei atentamente a fala dos representantes diretos do Governo. Foram dois Ministros (o Ministro Amorim e o Ministro Dulci), se comprometendo com as lutas que travamos no dia a dia das comunidades no exterior, inclusive com propostas concretas. Entendi que o Governo necessita de interlocução com todos os setores da sociedade e por isso oferecemos a nossa proposta de Rede como uma possibilidade de diálogo. Atenção: eu escrevi "uma possibilidade", admitindo que não devesse ser a única, nem exclusiva. Mas, entre nós que compomos a Rede, o importante é o nosso esforço para que sejamos melhores. Cada vez mais uma Rede de Brasileiras e Brasileiros no Exterior. Porque depois do Rio, creio que já não somos mais apenas "os da Europa". Sinto-me agora mais próximo de Moab, na Bolívia, de Khaled, no Líbano, sem falar no companheiro de Angola, do Japão, do Canadá, da Austrália, do Paraguai e até mesmo daqueles do Suriname que não puderam estar conosco. Creio que saímos do Rio com a sensação de que essa mensagem ficou bem clara. O diálogo apenas começa a ser estabelecido, a nossa autonomia está na nossa força, os desafios são imensos e as conquistas podem ser enormes. Até porque, lamentavelmente, o pouco que agora for feito será notável depois de mais de vinte anos de debilidades no tema da emigração brasileira.
Não esqueçamos que, para muitos brasileiros, emigrar ainda significa trair, desistir ou abandonar a pátria...
Por isso também no final da Conferência não estive, como não estou, tão preocupado em saber quais serão os poucos representantes de cada continente, presentes na comissão de trabalho que foi constituída. Assim, não tive nenhum problema em propor a indicação do companheiro Marcos, da Holanda, que em princípio havia sido escolhido apenas como relator de grupo, demonstrando capacidade como cada um de nós. Por ser também, acima de tudo e em certo sentido, como "um de nós". Mas até mesmo pelo esforço dele, como de algumas pessoas que trabalharam incansavelmente pelo sucesso da Conferência. E que se não fosse por algumas propostas de encaminhamento para solucionar alguns impasses, como a difícil escolha de representantes entre uma participação tão qualificada entre todos, pode ser ainda estaríamos lá no Itamaraty.
Da mesma forma que proponho (espero que percebam como é muito importante escrever a palavra "proposta" antes de muitas coisas que escrevo) também o companheiro Leonardo, da Itália, participante ativo desde Bruxelas, agora retornado ao Brasil e que, pela sua condição de retornado (um contingente a ser melhor "trabalhado") e pela proximidade territorial com o Governo, pode ajudar na construção desse início de caminho de diálogo. Também para solucionar o impasse de não havermos escolhido um segundo nome dentre os participantes da Europa, além de Marcos. E para ser responsável no cumprimento de prazos que nós mesmos estabelecemos entre todos, mesmo que já no final dos trabalhos.
Com isso, manifesto a minha sincera intenção de não continuar mais assinando documentos como Coordenação Provisória da Rede. Por motivos estritamente pessoais. E por muitas coisas que aconteceram no Rio e que me fizeram reflexionar na volta a Barcelona. Assinarei em baixo, sempre que for necessário assinar o nome da Rede. Sobretudo pela sua agora importância depois dessa 1ª Conferência que tanto esperávamos. E confiando que seguiremos os méritos democráticos pelo qual temos nos pautado desde Bruxelas.
Acredito na importância de uma pessoa e respeito a sua individualidade subjetiva. Mas objetivamente, em "política", sempre fui um defensor do espírito coletivo. Aprendi com o professor Paulo Freire que uma pessoa deve ser tão importante para um projeto coletivo na medida em que fortaleça a autonomia do projeto, até mesmo para que seja um projeto sustentável quando uma ou outra pessoa já não tenha condições de acompanhá-lo. Assim se demonstra que os processos que temos construído partem de projetos coletivos. Sem esquecer-se de que, humanizados, estão construídos por pessoas, antes de tudo.
Finalizo comentando mais duas perguntas, muito significativas, de dois repórteres, ainda na Conferência do Rio.
Um deles me informava que havia outra pessoa (brasileira emigrante, anteriormente entrevistada) com algumas perguntas sobre o que poderia ser esta tal de Rede. Pedi para que o repórter tentasse me reproduzir suas perguntas. Depois de agradecer a ele e de concordar com todas as perguntas que me havia reproduzido, afirmei que felizmente não teria a resposta para muitas delas. Que se já tivesse aquelas respostas não teria enfrentado tantas horas de vôo longe da minha família e teria desistido dessa busca estimulante antes mesmo de iniciá-la. E que por serem perguntas inteligentes e bem elaboradas me faziam identificar-se com aquela pessoa que nem conhecia, mas que perguntando me fazia refletir sobre as nossas próprias práticas e os caminhos a serem construídos, desconstruídos, reconstruídos... Ou seja, se nos unimos nem que seja para elaborar boas perguntas, que valem mais do que algumas mil respostas, está demonstrada a nossa capacidade e a viabilidade de se organizar numa rede de sociabilidade. Esse seria o meu interesse principal quando aceitei o desafio de estar em rede, e o convite para a Conferência: busco pessoas e organizações para tentar articular uniões. Uniões no mínimo, de idéias; no máximo, de utopias.
O outro repórter me perguntou por que a "minha organização" era diferente, se chamava "Coletivo", enquanto as outras se chamavam "associações". Primeiro não tenho nada contra quem opta pelo termo "associação". Segundo porque acreditava muito na força de palavras como "coletivo". Em terceiro lugar, não gostaria que fosse considerada a "minha" organização. E por último, lamentava não ter tempo para apresentar a "nossa" organização para ele. Por isso, lhe passei a nossa carta de apresentação para que, se quisesse, pudesse ler com calma. Estranhou e perguntou por que eu não havia feito ("como tantos outros") a apresentação do Coletivo em plenário, aproveitando enquanto todos estavam atentamente participando, naquele salão deslumbrante.
Concluí respondendo que para mim, o Coletivo é algo mais importante que caminhar sozinho. Por isso, o estamos construindo. E construindo coletivamente. Concluí afirmando que no universo de tantas coletividades ali presentes, uma Rede é uma tentativa de coletivizar o trabalho de tantas organizações que às vezes caminham sozinhas. Tento representar um coletivo, o Coletivo Brasil Catalunya perante a Rede. Naquele importante momento, a Rede é o coletivo mais importante. Mais importante que qualquer organização. Mais importante que o nosso Coletivo Brasil Catalunya, do qual é impossível esquecer, de onde eu venho. E mais impossível ainda esquecer-se de mim, indivíduo coletivo.
Não sei se ele entendeu.
Não sei se eles entenderam.
Não quis apresentar respostas.
Se quisesse, não teria passado tanto tempo escrevendo. Teria feito um resumo de apenas três pontos principais. Não acredito que produziria tanto efeito quanto relatar experiências bastante pessoais.
Por isso, segui ocupando uma vez mais o meu (muito importante) tempo pessoal para construir uma mensagem que dialogasse coletivamente, com as pessoas que quiserem dialogar – até mesmo porque se chegaram até aqui é porque dedicaram parte do seu importante tempo para ler.
Espero que tenham entendido. E gostado, como eu gostei.
Flávio Carvalho.
Coletivo Brasil Catalunya.
Rede de Brasileiras e Brasileiros no Exterior.
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
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